sábado, 30 de abril de 2016

TECIDO, meio de vida

Entrevista parte um.

Estão acomodados em um pequeno sofá perfeito para o tamanho do apartamento. Têm as pernas cruzadas e, a ponta dos pés, sem querer, se tocam
Não há mesa de centro como apoio possível para os objetos
Liga e então, desliga o gravador

- vamos lá?
- vamos
- quero perguntar algumas coisas
- Tudo bem
- se é que há serviço nisso, não é mesmo? – um riso
- como assim?
- se é que há um porquê de tratarmos disso, não é? – mais risos
- foi você quem sugeriu. você quem veio até aqui
- É verdade. vamos conversar
- Ok
- Me fale das suas influências. quais são?
- Bem, minhas influências? – Visivelmente contente
- sim
- Nossa, sempre imaginei um dia poder falar sobre isso
- pois fale
- mas nunca pensei que alguém, um dia, se interessaria
- Eu também não
- como é?
- Mas aqui estamos nós, só nós dois. Do que não poderíamos falar, não é mesmo?
- É
- que é?
- que nunca me perguntaram isso
- isso o que?
- as influências
- ah, sim. aproveite e fale
- são tantas
- o que são tantas?
- as influências
- pois diga uma
- uma?
- É
- ãh, deixe me ver
- vai, vamos, diga
- bem, minha mãe
- o que?
- minha mãe
- sim, sim. Eu ouvi, já entendi
- o que entendeu?
- É claro que sua mãe. Foi ela quem te criou
- E daí? poderia não ser
- Então diga
- da minha mãe ser uma influência?
- de outra.
- são tantas
- Então diz da mãe
- bem, você sabe: ela quem me criou
- sim. Eu disse isso
- o que?
- Mães são influências justamente porque nos criam
- calma, eu não terminei
- Então vai
- Minha mãe foi meu primeiro ateliê
- como?
- minha mãe
- que tem ela?
- Ela tinha um ateliê de costura
- certo
- Eu era pequeno e na verdade eu nem reparava muito nos trabalhos a não ser que ela fizesse algo e esse algo fosse um presente para mim
- tipo?
- uma roupa, por exemplo
- certo. – Faz anotações. Descruza e volta a cruzar as pernas, agora, em direção oposta.  – Então ela fazia suas roupas?
- Não. Quero dizer: sim!, mas não é isso
- certo. Então que mais?
- Ela fazia uns blusões. Lembro de um que usei muito
- E aí?
- Eu só me lembro disso. ãh, na verdade, eu só me lembro de uma noite, fui para o ateliê. Era uma casa e eu fiquei foi, mais, é, brincando no quintal. Eu sempre fui de brincar muito, sabe?
 - sei
- bem, na época, eu não tinha a menor ideia de que seria minha mãe parte da minha veia artística
- sua veia artística!?
- É. por que riu?
- Não, nada, me fale disso
- E foi então que
- Engraçado, veia artística. – Mais anotações
- É, que é que está anotando aí?
- Nada. só algumas coisas para depois, sabe?
- Não. Não sei. que é?
- por favor, não se preocupe, continua
- Então me deixe terminar
- claro
- Hoje, no ateliê, vejo os retalhos costurados, formam figuras, compõem uma manta e eu acompanho todo processo
- certo. Então sua influência é o patchwork, não acha?
- Não. é minha mãe
- Mas sua mãe faz patchwork, não é isso?
- sim. Mas não se trata disso.
- Então de que?
- por exemplo, tenho amigos e amigas que trabalham com artes visuais, com literatura, com teatro e, são eles, é, a maneira deles produzirem que me atrai
- certo, certo. E que mais?
- Bem, é que – entrega o embrulho que tem no colo –, veja isso
- que seria? – Descruza e cruza as pernas como no início
- um trabalho da minha mãe. Eu penso mostrar, fazer uma foto, que acha?
- certo. É bonito
- É. não é?
- É. Mas, poesia, como funciona a poesia para você?

terça-feira, 26 de abril de 2016

depósito de confiança


- você me parece do bem
- por que está me dizendo isso?
- é como um depósito de confiança, de que confio em você
- eu não te pedi nada
- sei que não. É um agrado. por conta do que vejo em seu coração, confio em você
- conheço isso
- isso o que?
- esse papo
- que papo?
- de agrado. Não quero
- ah, vai me dizer que não gosta?
- de agrado eu gosto
- então
- mas eu não pedi
- ah, mas deixe disso!, agrado não se pede
- deixe você. agradeço. Mas não sou obrigado, volto a dizer, não quero
- que é, ein?
- Eu é quem te pergunto
- ih, hoje você não está bem
- aí, vê? percebe?
- o que?
- outra vez
- o que?
- julgamentos
- que!? Está doido
- outra vez
- outra vez, o que, ein? me diz
- começa dizendo do meu coração, se coloca no direito de dizer do meu ânimo e, depois me chama de doido
- ah!, homem
- o que!? que vem agora?
- ah!, passar bem
- sim. por favor. digo o mesmo, passe bem


sábado, 23 de abril de 2016

O filho existe

com o caderninho, no chão

- como é mesmo!? – gritou
- senhor!, Ei, senhor, você está bem? Não pode gritar aqui não

talvez tomasse nota,

“ uns com tanto e outros com ”

- Estou – respondeu e continuou – “ nada ”. não é nada.

sozinho

“ a linha quatro amarela do metrô agradece a preferência ”

no falante.

- de quem?, de quem é a preferência?, ein? – Levantou. – coisa nenhuma. foram dois ônibus até a primeira estação – a mais perto – da linha azul

Nos esbarramos a caminho da linha três

- Desculpa – Eu disse
- Espere!

parei

- você ouviu? você tem um minuto?

E ele continuou

- Eu estava em casa. Tinha as galinhas para alimentar, “ alimentar as galinhas ”, tinha ovos, “ ovos para o almoço ” e, plantas, merda!, esqueci, “ regar as plantas ”

falava e, tomava nota

- Nem passei o café. falaram comigo. você ouviu!, não ouviu?

“ levanta, vai trabalhar ”

- Tem tempo essa gravata, esse terno. Pra onde fica o centro?
 


Nas placas – quem te movimenta? – orientação

- o senhor tem de fazer baldeação
- certo

“ baldeação ” – no canto superior direito. na folha. que não cabiam mais as palavras

- que linha é isso?
- Em qual lugar do centro o senhor vai?
- Não sei. Eu morava sozinho. Então, ei!, eu morava sozinho. falaram comigo, mas, eu morava sozinho

com o lápis em riste saiu absorvido pela multidão

- só pode estar louco – Eu disse falando

sozinho

com o que tenho

o que posso fazer?

vou ficar

colocar mais água no feijão.
muito melhor.
vamos
não em todo lugar
- onde?
no escritório, o prego e a Lua, na parede, fuga
fuja
vem
a casa
é a própria cidade

vou ficar

Lendo
chamaria: “ Não um texto ”, um recado

talvez uma carta?

Na verdade, muito mais que isso, um processo

No histórico, no meu e-mail, encontrei conversas nossas

para deixar engraçado, pensei: melhor reescrever
que não fique bagunçado
você chega e me desarruma inteira

Não. calma, não é isso

foi eu quem pediu o acontecido, impediu o acontecer

Eu estava, mas logo, desculpa, cansei
a vontade é dizer, digo: estou com saudade, a cama, do lado da cama [sempre] meu [seu]

Não exatamente nessa ordem, não exatamente aquele dia, aquela vez, não de você, o lado da cama

Minha cama só não me acolhe. que coisa!

Entenda

nunca é bom perder você ou alguém, que seja
mesmo que eu conheça e viva maravilhas com outra pessoa
não é isso
conhecer outra pessoa é bom, é outra coisa
perder você nunca foi bom

não tenho paciência para explicações, você sabe
quando tanta coisa chata está rolando
penso contar com você que não entende, mas, poxa, ouvir, você ouve bem

Também quero saber de você

porque,

aqueles textos todos?,

você escreve para quem?

são bons

Pois, antes que eu me esqueça, ou, para que eu não tenha de me lembrar depois

.bolo de banana. Não gosto mais. Embrulha o peito
.Mudei as músicas. com muita coisa nova rolando, aproveita a oportunidade

Não me leve a mal

que o pen-drive, faz lembrança dele, um chaveiro, que acha?

Isso de guardar ... credo! que te guardei de um jeito, você não é assim

vim para esclarecer o que faltava, desembrulhar o peito

Talvez, quem sabe?, você de volta, do lado da cama posso me deitar em silêncio. falar e falar, ir diminuindo até pegar
no sono

o que for melhor para nós dois?

cama grande, coração vazio – fica lugar comum

Não fica?
Me ajuda?
Não estou confundindo ninguém!

seria mais fácil ficar sem você, foi o que pensei.

Mas depois dos
trinta dias     
mais de meses 

você deve estar pensando: que lado da cama é esse que ela está falando?

- você dorme na diagonal

Lembra?
você quem disse. Logo que eu acordei

Logo ela que não é disso
ficou até tarde
visualizava e respondia sem os longos intervalos de tempo
Longos intervalos de tempo. Eu nunca soube se bem ou mal – seria um charme?
Não era
Me irritava muito

Não quero mais te ver

Na madrugada sem beijo, sem abraço, sem graça, só

Ela que sempre dormiu primeiro

Tchau
Beijo
Vou dormir

E eu que sempre fiquei
Dessa vez fiquei com as lembranças das boas noites

Eu estava com sono

Devolve minhas músicas

Foi um presente para dizer com letras

“ veja bem, meu bem ”
“ olha só, moreno de cabelo enroladinho [e], olha com carinho nosso amor ”

Eu ouço no carro
Não devolvi
Ela tem as músicas no celular

Fiquei com o pen-drive chaveiro da chave da porta de casa

Fiquei na padaria sentado, no balcão

- um sonho

- oi, moço, minha irmã esteve aqui?

Meu olhar no atendente
- Não sei – ele disse

Meu olhar nela

- Meu deus!, você aqui?, o que está fazendo aqui?
- Estou procurando minha irmã. você viu?

a irmã que não mora aqui no bairro. que não sabe dessa padaria. ou sabe

- Não
- ah, que bom
- como?
- Não, nada, esquece
Deixamos a padaria, atravessamos a rua, seguíamos juntos

- que livro é esse?

Eu tinha dois livros em uma das mãos

- onde deixei o carro?
- Não é esse aqui? – Ela apontou do lado direito
- ah, claro

Da esquerda, eu sempre trago os livros

- segura! dá uma olhada, é bom
- massa

Seguimos para o apartamento

- adoro sua casa

Tirou e deixou os sapatos perto da janela, deitou no sofá, correu o olhar nos detalhes

(Tem coisas que ficam da última até que chegue sua próxima visita)

Eu corri ver se tudo estava em ordem

Na parede de lousa

“ acordei cedo para não dormir tarde. dormi, muito antes de anoitecer ”

- Eu tenho que ir – ela disse
- Mas nós acabamos de chegar
- amanhã eu trabalho
- Mas ainda é cedo
- Mas sempre fica tarde

Tentei um assunto – na estante de livros – nada

Então, eu

que para cidade fui pouco – combustível menos um quarto – o todo do que tenho para contar

- É mesmo pouco. E pouco não vai dar. por favor, não me procura mais

Não encontrei nada possível além da televisão ligada
um dia que fui na cama até ás três horas da tarde
Não levanto para fazer nada se nada tem que possa ser feito

- Tá. Então . Então vamos
- Não precisa, pego um táxi
- Táxi? Não, imagina, um táxi? Não. levo você
- Não precisa
- Prefiro levar. aproveito, saio para fazer algumas coisas

Eu não tinha nada para fazer

- Meus pais estão praparecer lá em casa
- Legal! – disse para ser simpático – você deve estar com saudade deles
- Não quero que eles te vejam

com o que me visto
nas mesma roupas poucas que ainda me cabem bem

-

sou feito carne e osso, feito com gengiva e dentes
também sou feito gente
no mesmo espaço, no mesmo horário, no sol a pino, sem ter por perto um verde visível – só o asfalto e os muros todos altos
acenou pra mim
com esforço
escapou seu maior desejo

- Diz pra ele esperar um pouquinho

atendi

- Ei
- Não posso – com a primeira engatada
- Mas a senhora – indiquei com os braços
- Me desculpe – e partiu

Não pôde. entende?
claro! que entende
não é mesmo?

que da sacola, da senhora, do mercado, no asfalto, do alimento escorrem gotas de água – e mais essa, quem garante que seja fresco?

vê?

as conduções não são as mesmas porque as condições são diferentes

Então eu me desculpo

- Sei, meu filho. sei.

e vou embora

Eu não soube o que dizer. vai ver ela estava apenas nervosa

ficou ali mesmo

- Não precisa dar a volta
- Mas aqui?
- É

na esquina da casa, no farol fechado

- Não quero tomar seu tempo

É que você não veio o suficiente para aprender que não

Não tem interruptor na parede de lousa

o azul no travesseiro, no seu rosto, não sabíamos, como?
acordei na madrugada
fui buscar um copo com água – você sempre me pedia um copo com água –
no final do corredor levei a mão direita na parede de lousa

Na parede de lousa não tem interruptor

notei que não resolveria saber que não tem interruptor na parede de lousa

toda vez que você passar pelo corredor pode pintar a mão na cor
verde amarela azul rosa ou laranja
apagar minhas anotações

Por que não colocamos interruptor na parede de lousa?

escrevo reescrevo quantas vezes preciso for suas idas e vindas do corredor

- ficou tarde
- é, dorme aí

um charmoso studio sem divisórias
cozinha sala quarto
só no banheiro, cercado por blocos de vidro – transparente

um colchão casal e almofadas

- preciso de um banho

somente as roupas para lavar cobriam os corpos depois do chuveiro
desejei secar o cabelo, demorar um pouco mais
todos já estavam deitados

um único lençol
e o toque era inevitável durante, qualquer fosse, o movimento
Eles com riso nos lábios fizeram chacota no meu cabelo

- boa noite, moço

Pelo elevador social, pela porta da sala
vou para o almoço, para janta, ou para o café
vou e fico para descansar

- boa tarde
- boa tarde

Na hora do chá

- Tem café pronto, fresquinho

reparo as panelas no fogão, as frutas na mesa, deve haver suco na geladeira

- ficou sem comer até agora, não foi?
- não. fiz um lanche por aí
- veio uma moça logo cedo
- como?
- deixou uma criança comigo, logo cedo
- que criança?
- seu filho
- filho?
- é. não sei. Disso quem tem que saber é você
- mas quem é essa moça? E a criança?
- não perguntei. Eu estava com as panelas no fogo. a moça tinha um anel no dedo. deixei no quarto
- o anel?
- a criança
- mas, e a moça?
- não sei!
- É ela
- quem?

Teve a mãe de querer o filho registrado com o nome do pai e Filho sem o santo dos Santos

- Tudo bem

O pai sempre presente deixou para mãe o menino com doze anos
Foi de uma falta de ar direto para um câncer no pulmão e nunca mais voltou
Não levou o maço dos cigarros e as cinzas sempre caem quando a gente passa correndo no corredor

Em CASA DE MÃE o passeio deita na cama saudades

O menino, hoje, um rapaz, faz visitas leva pó de café, detergente, sabonete, um pouco de açúcar, frutas

Faz compras apenas quando você vem

quando você vem?

“ Eu não posso ter um filho ”

Ela adora crianças

“ você não tem juízo? Se acontece alguma coisa? quem resolve? Você? ”

Minha curiosidade quem primeiro viu o bebê, na cama, num cobertor florido, com os olhos fechados, sem ver o pai

- que vou fazer?

Despertou o choro quando vibrou meu celular

a mesa estava posta assim que levantei

- dormiu bem?

café e leite, leite e nescal, só leite, suco de laranja, chá verde mate ou preto, pão e manteiga, queijo e goiabada

Mas

Não vai dar
Não vai dar
Não sei
Você não vai entender, eu não vou explicar

“ tem dias que é foda. Mas tem outros ”

- Desculpa, demorei. Tudo bem?
- Tudo. só quero chegar logo em casa

Na sexta-feira pega carona, pega estrada, passa o fim de semana na casa dos pais

Não era sexta-feira. Era um dia foda e mais o capeta no corpo dos alunos

“ Nossa!, deus do céu ”

Envio mensagem quando ela sai do trabalho. Raramente ligo.

Ela parou na lanchonete para um petit gateau antes do francês – às oito horas

Me ligou?
Não vai dar
Tenho aula

Deixa de lado o aparelho na mesa, aparece um conhecido

- que bom te ver!
- vamos marcar alguma coisa
- sim! te ligo

sete horas e trinta e sete minutos, espera pelo primeiro ônibus que passe, o primeiro sempre vem lotado

- saco! – toma um remédio, odeia tomar os remédios

Estou indo para aula, depois vou para casa. Estou cansada. consegue entender isso?

Toma um banho, vai deitar

o lençol manchado

deita direto no colchão – sem tempo para lavar o lençol

Procuro entender. Mas como não respondi as mensagens

Não me deixa falando sozinha, ok?
cheguei

duas e dez, madrugada. sento no banco da mesa da sala. Escrevo. para resolver. o livro

- moço
- moço
- assina?
- claro

duas crianças

- é da mamãe
o mais velho diz o nome

“ na arte, com a arte, pela arte, nosso caminho, que seja doce, boa leitura, com amor, Edu ”

- Pronto! – entreguei o livro – aqui! obrigado, crianças

segui com o olhar, corri com a cadeira até a ponta da mesa, vi a mãe de costas, a maneira do cabelo preso, o nome

eram duas crianças lindas

- Edu! o pessoal está esperando

Foi ontem, não foi? Estávamos resolvendo as coisas, trocando mensagens no celular

E as crianças já estão falando?

Tudo, um dia, é tão difícil. sem solução. E no outro

segui com o trabalho

“ Não é suficiente ”

o vô estava certo
era a vó quem cobria a maior parte de todos meus gastos

foi o tempo

- se a gente quiser a gente volta
- como isso?
- voltar também é seguir
- de que jeito?
- enfrente


Edu Xavier Filho
2016

Vila Mascote, São Paulo, Brasil