domingo, 20 de setembro de 2015

DO SONHO

Entra pela porta da sala.
Aparece ao menos uma vez ao dia. Almoça ou janta ou café e pão com manteiga.
É um dos poucos lugares onde ainda se espreguiça.

“Boa tarde”.
“Boa tarde”.

O diálogo acontece na cozinha. Já é hora do chá.  

“Tem café pronto, fresquinho”.

Ele repara as panelas no fogão, as frutas na mesa, deve haver suco na geladeira.

“Ficou sem comer até agora? ”.
“Não. Eu comi uma coisinha por aí”.
“Veio uma moça, logo cedo, deixou uma criança comigo, pediu que eu te entregasse. Ela disse ser seu filho”.
“Que moça? Que filho? ”.
“Não sei. Ela tinha o rosto coberto. Pude apenas ouvir sua voz e ver suas mãos delicadas. Tinha um lindo anel no dedo. Uma moça. Deixei a criança em seu quarto”.
“Como era a voz? ”.
“Eu não sei dizer”.

Lembrou da moça das Minas Gerais.

“Eu não posso ter filhos”.

Uma criança atrapalharia o promissor futuro todo pensado por ela.

Ele pegou uma banana no balcão, saiu pela porta da cozinha, abriu a porta de incêndio onde no vão entre a porta e a escada, construiu dois cômodos, sua casa.
Entrou no apertado primeiro cômodo. A curiosidade foi quem primeiro viu o bebê. Estava enrolado em cobertores azuis, na cama, no cômodo seguinte.
Encostou a porta que divide os dois cômodos, sentou no banquinho do cômodo um. Ainda podia ver os olhos fechados do bebê dormindo. A criança nunca tinha visto a figura de seu pai, nunca havia visto a fisionomia dele. Melhor que continuasse sem ver. Pensou como faria isso. Pensou para quem entregaria a criança.
A criança começou a chorar. Ele notou que ela estava na beirada da cama, mexia as pernas e os pequenos bracinhos. De tanto mexer caiu no chão.
Ele colocou a criança em seu colo e nesse momento o coração dele ardeu em chamas. Mas a criança chorava e o choro dizia palavras que ele odiava, que o deixavam completamente irritado.

“Fraco, fraco, fraco, fraco”.

Como seria possível um pai sem uma mulher?

   


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Foi massa

Escritório, centro da cidade.

- Leva esse envelope até a Sete de Abril. Muito cuidado.
- Pai, posso ir com ele?
- Pode.
- Posso ir com você?
- Pode.

Elevador.

- Gosta de videogames, não gosta?
- Gosto.

Sábado, 10 horas da manhã, dia tranquilo.

- Vem. Vou te levar num lugar maneiro.
- Mas e o envelope? Melhor entregar, né?
- Sim, sim. Mas já é ali, vem.
- .

Avenida São João. Fliperama.

- Eu posso entrar aí?
- Não, pode, vem. Pega nada.

- Dá uma ficha.

Máquina seis, fundo da loja, perto das mesas de bilhar. Pouco movimento. Apenas quatro pessoas no local (o dono, um rapaz, o pequeno e o mais velho).
A ficha desce a máquina, explode um som forte dos falantes, o jogo começa, o pequeno se assusta. Sabe pouco do jogo, do joystique nada parecido com os controles que tem em sua casa.
Com o envelope embaixo do braço o mais velho tem dificuldade para executar os movimentos. Então, com uma das mãos retira o envelope enquanto a outra continua para não pausar a diversão, coloca-o entre o joystique e a tela, um vão.
O envelope cai para dentro do móvel que lacra e esconde o aparelho de computador e os fios que fazem piscar luzes e vibrar os sons do empolgante universo digital.
Entre o chão e o móvel pesado não há espaço que seja possível passar uma mão. Mesmo a mão do pequeno, mesmo uma caneta Bic que tenta alcançar o documento.   

- Ei, caiu meu envelope dentro da máquina. Tem como abrir e pegar, por favor?
- Dançou, rapaz. Só segunda-feira – disse o dono que nem se mexeu da cadeira, nem fez questão.

- Dancei o caramba – sussurrou o mais velho para o pequeno – vê isso.

Pegou dois tacos expostos na parede da seção de bilhar e fez deles instrumentos para pescar o envelope que trazia na capa, escrito: Caixa Econômica Federal.
No vão entre a tela e o móvel manipulou os tacos que faziam barulho ao escaparem das mãos e ao baterem no tampão.

- Ei, moleque!, se quebrar vai pagar. entendendo?

O pequeno segurava o choro, já estava apavorado, queria ligar para o pai.

- Beleza, consegui! Vamos sair daqui.

O mais velho tomou a mão do pequeno, saíram às pressas e no caminho, o pequeno mais calmo, largou da mão do mais velho.

- AQUILO FOI MUITO MASSA!

De volta ao escritório.

- Vocês demoraram. O que aconteceu?
- É que eu quis um sorvete – disse o pequeno – Mas o sorvete derreteu, caiu. Voltamos para comprar outro. Demorou.
- Sei. Sorvete? . E a essa hora? Cada uma, viu.

Fim do expediente, hora do almoço.

- Ei, valeu. Vem. Te devo um sorvete – disse o mais velho.

- Dessa vez se num tá levando nada, né? – retrucou o pequeno.