quarta-feira, 22 de abril de 2015

Amanhã vai ... amanhã, sim, tem de ser outro dia

Pois não é possível, sempre às cinco, depois disso fico atrasado, o céu ainda escuro, a iluminação só a das maquinas.  
Os carros parecem sair, todos juntos, no mesmo horário.
Um vermelho intenso, na minha frente, cobre todas as faixas menos uma, a do ônibus lotado.
São anos do percurso periferia-centro-centro-periferia para buscar o dinheiro amassado dos diabos que paga o pão dos deuses.
Dê graças.
Pois há de ter o que comer quando o dia já se foi, nem vi.
Será que esqueço?
As luzes já estão acessas quando chego em casa.
Com sorte tomo um banho quente antes do noticiário.
- Boa noite.
Sempre educados.
No sofá-cama-brinquedo-estante-mesa dou um cochilo embalado pelas falas programadas de novela, outra, parecida com a mesma da série passada.
Onze e meia e isso já é madrugada. Acredite. Pois, aqui, passa o tempo que nem bala.
- Sai da janela, filho. Vai que é tiro.
As crianças sempre brincando. Esquecem do perigo? Nada.
Meia noite e meia enfim, estão dormindo.
O corpo horizonte agradece o membro em pico, aguenta o outro, a companheira, sobe e desce, verticalizado.
A cama é forte, mas dá estalos. E tem problema?
Tem, de ser rápido.
Um beijo, até logo. Mas amanhã.
Amanhã vai ser outro dia.


quarta-feira, 15 de abril de 2015

Só queria um conto?

          - Conta alguma coisa.
          - Contar? Deixe-me pensar. Sabe? Estou mesmo com vontade de ouvir.
          - O que gostaria de ouvir?
          - Alguma coisa que nos alegrasse. Sabe? Sei lá. Bem, lembrei de algo. Hoje, no tempo de um farol, assim que parei, pensei, cheguei a tocar o dedo no botão para subir o vidro, mas desisti. Um rapaz surgiu pela frente do veículo e antes de se aproximar pediu licença. Chorou esmola durante um breve bate-papo comigo.
          - Continua.
          -  Ele gesticulou um vazio com a mão sobre a barriga, contou sua fome e com a outra mão mostrou uma velha moeda de dez centavos como quem diz, dez centavos resolvem. Eu ouvi sua prosa gravada com um sorriso de quem não deseja ouvir história alguma. Poxa, logo cedo, aquilo de fome. Eu disse a ele que para dar dinheiro, eu não tinha. Então ofereci meu lanche: um achocolatado de caixinha e uma banana nanica. Vou comendo dentro do carro enquanto estou no caminho para o trabalho. Ele mudou a mimica e fez com as mãos como quem diz, não precisa. Agradeceu e disse não querer atrapalhar meu café. E então, dessa vez, eu sorri mesmo. Ele agradeceu novamente. Pareceu estar satisfeito. Então pensei: talvez a fome não seja só de comida e nem só de ...
          - Satisfeito? Não creio. A fome é de dinheiro. Alimenta os desejos e compra comida.
          - Mas não foi isso que senti. Pensei na fome que não é nem de comida e nem de dinheiro. Satisfeito, pois, talvez, seja fome de ouvir ou ser ouvido. E veja, por um momento a primeira coisa que pensei: subir o vidro.
          - Legal. Mas, é que .... Já ouviu isso? “Quem gosta de miséria é rico lendo romance.”.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

          Não conseguia lembrar quando começou. É provável que já havia começado a algum tempo. Pensou que de nada adiantaria voltar tanto para compreender tudo. Lembrou do dia em que notou. Notou que algo deveria ser feito. Hoje já fazem alguns meses.
          Meses de noites de jantares em pratos postos à mesa, frios. Não engolia outra coisa senão pensamentos, desencontros, informações muitas, chiando da tevê, que não diziam coisa alguma. Uma indigestão de fazeres do dia e afazeres do próximo.
          Ele larga a louça na pia. Sente um forte cheiro do lixo que sepulta alimentos de quando .... Nem lembra mais a última vez que recebeu sua visita. Acredita que a louça acumulada possa vir a ser uma terapia, um pouco de atividade que minimize os desejos e as vontades - propagandas idealizadas da vida cheia em divertimento, sorriso, uma casa sempre limpa - de um, de todos os fins de semana que passam e não concretizam como esperado.
          Faz da louça o único objeto, patrimônio que pode, que tem para guardar. Para ter, quando quiser, um gosto, sentimento de que cabe à ele e de que dele depende, requer a decisão. Mas nem mesmo isso. Todas as manhãs quando, logo cedo, acorda, parece mágica. A louça some ou melhor sumiu? Está limpa, guardada no armário como se não tivesse sido utilizada.
          Esfrega as mãos nos olhos. Pois pode ser culpa da visão que dormiu tarde, ainda não despertou. Pois foi mais uma noite dos olhos abertos na claridade da tela, alternando intensidade de cor, induziam as piscadas até a hora em que, as vistas secas, o corpo não mais aguentou.